Thursday, December 06, 2007

O poder desarmado - Heloneida Studart



Eu tinha 13 anos, em Fortaleza, quando ouvi gritos de pavor. Vinha da vizinhança, da casa de Bete, mocinha linda, que usava tranças. Levei apenas uma hora para saber o motivo. Bete fora acusada de não ser mais virgem e os dois irmãos a subjugavam em cima de sua estreita cama de solteira, para que o médico da família lhe enfiasse a mão enluvada entre as pernas e decretasse se tinha ou não o selo da honra. Como o lacre continuava lá, os pais respiraram, mas Bete nunca mais foi à janela, nunca mais dançou nos bailes e acabou fugindo para o Piauí, ninguém sabe como nem com quem. Eu tinha 14 anos, quando Maria Lúcia tentou escapar, saltando o muro alto do quintal de sua casa, para se encontrar com o namorado. Agarrada pelos cabelos e dominada, não conseguiu passar no exame ginecológico. O laudo do médico registrou "vestígios himenais dilacerados" e os pais internaram a pecadora no reformatório Bom Pastor para "se esquecer do mundo". Esqueceu, morrendo tuberculosa. Tais episódios marcaram para sempre a minha consciência e me fizeram perguntar que poder é esse que a família e os homens têm sobre o corpo das mulheres. Antes, para mutilar, amordaçar, silenciar. Hoje, para manipular, moldar, escravizar aos estereótipos. Todos vimos, na televisão, modelos torturados por seguidas cirurgias plásticas. Transformaram os seios em alegorias para entrar na moda da peitaria robusta das norte-americanas. Entupiram as nádegas de silicone para se tornarem rebolativas e sensuais. Substituíram os narizes, desviaram costelas, mudaram o traçado do dorso para se adaptarem à moda do momento e ficarem irresistíveis diante dos homens. E com isso, Barbies de fancaria, provocaram em muitas outras mulheres as baixinhas, as gordas, as de óculos um sentimento de perda de auto-estima. Isso exatamente no momento em que a maioria dos estudantes universitários (56%) é composta de moças. Em que mulheres se afirmam na magistratura, na pesquisa científica, na política, no jornalismo. E no momento em que pioneiras do feminismo passam a defender a teoria de que é preciso feminizar o mundo para torná-lo mais distante da barbárie mercantilista e mais próximo do humanismo. Por mim, acho que só as mulheres podem desarmar a sociedade. Até porque são desarmadas pela própria natureza. Nascem sem pênis, sem o poder fálico, tão bem representado por pistolas, revólveres, punhais. Ninguém diz, de uma mulher, que ela é espada. Ninguém lhe dá, na primeira infância, um fuzil de plástico, como fazem com os meninos, para fortalecer sua virilidade. As mulheres detestam o sangue, até mesmo porque têm que derramá-lo na menstruação ou no parto. Odeiam as guerras, dos exércitos regulares ou das gangues urbanas, porque lhes tiram os filhos. É preciso voltar os olhos para a população feminina como grande articuladora da paz. E para começar, queremos, neste mês de março, pregar o respeito ao corpo da mulher. Respeito às suas pernas que têm varizes porque carregam lata d`água e trouxa de roupa. Respeito aos seus seios que perderam a firmeza porque amamentaram crianças, ao seu dorso que engrossou, porque ela carrega o país nas costas. São mulheres que imporão um adeus às armas, quando forem ouvidas e valorizadas. E puderem fazer prevalecer a ternura de suas mentes e corações.
Viva Rita Lee que canta: "nem toda feiticeira é corcunda, nem toda brasileira é bunda e meu peito não é de silicone... sou mais macho que muito homem"

Heloneida Studart, abril de 1932 a dezembro de 2007; nestes 75 anos a esperança brilhou mais forte.
___________________________________


|


Sunday, December 02, 2007

Prostituição infanto-juvenil: o que os pais têm haver com isso? Ou: Quem educa nossos filhos?!?



O texto de hoje é apenas um lançar de idéias, meio ansioso e muito preocupado... Uma tentativa de levar à reflexão, quiçá à discussão, de nossa sociedade cruel e consumista e da educação que estamos oferecendo a nossos filhos. Filhos que devíamos proteger, cuidar, ensinar... Filhos que deveriam mais que ter, ser... Ser valorizados, acarinhados, criados para o mundo lá fora (de nossas asas)...

A pergunta é: Diante de tantas preocupações no patamar social, ecológico, ambiental... Etc e tal.... Que mundos estamos oferecendo para nossos filhos e que filhos estamos oferecendo para o nosso mundo?

Hoje estava discutindo com uma colega, em pleno PED do PT (sim, eu sou petista, de carteirinha... dá licença!). Falávamos sobre a educação de nossos filhos e do mundo hoje, sobre a lastimável fome de consumo a que nossos filhos (e jovens de todo o mundo) são conduzidos...

Estive lembrando de críticas que fiz a educação de um adolescente próximo. Menino ávido por roupas de marca, coisas caras, etc... E totalmente desprovido de valores humanos e ignorante sobre o seu valor enquanto pessoa. Um menino que é apenas mais um, no meio de tantos, a perder seu tempo com coisas que na verdade, não tem valor algum... Iludido com promessas de pais que não souberam colocá-lo no lugar devido... O de filho.

Veio-me uma pergunta à mente: Quando foi que começamos a prostituir nossos jovens? Sim, porque os pais vêm prostituindo seus filhos quando os vêem em plena febre consumista e não buscam a cura. Deixam seus filhos relegados a uma mídia que impregna suas mentes, que os faz ser apenas o que vestem, o que calçam, o que consomem... Seres sem conteúdo...

Essa minha amiga estava me contando sobre uma conhecida, que pagava para a filha freqüentar uma academia. Dizia ela: "Não está linda minha filha? Vai arrumar um marido rico!!"
Fiquei de boca aberta!! Com que ingenuidade ou ignorância uma mãe se coloca a dizer que a filha nada mais é do que um objeto a ser vendido? (Sim, porque é isso que ela se torna. Um pedaço de carne exposto a ser leiloado. Quem pagar mais, leva...)

Onde foi parar a valorização pelo mérito de conseguir galgar degraus por si mesmos? "Ahhh! Ela não tem capacidade, tem que se virar..." Pois é... O objetivo do "casamento rico", "do jeitinho", "do se virar"... E até lá, por quantas passarão, no ímpeto de "fazer qualquer coisa" para alcançar objetivos tão baixos? Isso me faz lembrar que a incidência do vírus HIV tem aumentado entre as meninas na proporção de 3 ou 4 meninas para cada menino, segundo uma reportagem que vi. Nessa mesma reportagem uma menina de uma comunidade qualquer dizia: "Eu transo sem camisinha com meu namorado porque senão ele arruma outra". Como se ele, para ser o "macho" não fosse fazer a mesma proposta a outra menina qualquer (ou a mais 2, conforme pesquisa). Aliás, não podemos esquecer que em muitas comunidades o "casamento rico" se traduz no poder se vestir, se alimentar, ser protegida pela "elite" da comunidade: o tráfico.

Muitos pais vêm "esquecendo" de valorizar a capacidade de nossos jovens, de dizer que podem ser aquilo que quiserem. Que podem mudar o mundo... E mais: podem ser felizes muito mais por suas realizações do que por ter a camisa X ou o tênis Y... Fica mais fácil comprar a camisa e o tênis...

Vejo nossos jovens expostos à vida lá fora, sem qualquer proteção, achando que por estar "tão bonitinho com a roupa nova" (que custou metade da renda da família, se não mais) vão conseguir um bom emprego, num local de trabalho ideal...

Queremos tornar nossos filhos diferentes, primeiros, invejáveis... E os tornamos meros castiçais adornados com a ignorância, com a desvalorização do seu eu... Só porque tem um loiro na televisão que por ser "um gatinho" mesmo falando errado, conseguiu um contrato com salário alto naquela transmissora de televisão... Esquecem de fazer a conta: ele é um em 65 milhões...

Mas onde está o erro? Nos pais que superprotegem seus filhos, livrando-os de toda e qualquer dificuldade, facilitando excessivamente o acesso a bens materiais, alimentando a fome de consumo com a velha desculpa do "eu quero dar ao meu filho tudo que não pude ter"? Ou nos jovens que vão se acostumando a ter tudo fácil, que se tornam cada dia mais exigentes... Até que um dia... Seus pais não podem mais dar... E aí...

Aí é a vida que vai ter que dar um basta, um limite... E este pode ser definitivo...




|